A Tradição, uma palavra maldita


Se existe uma palavra considerada "maldita" no meios evangélicos, sem dúvida é a "TRADIÇÃO."

Isto tem acontecido devido a uma reação à doutrina católica sobre o papel da tradição apostólica. O Concílio de Trento (século 16) declarou que a revelação especial de Deus não estava contida unicamente nas Escrituras. Foi estabelecido que a revelação especial estava contida em parte na tradição escrita (as Escrituras) e em parte na tradição oral (ou simplesmente a Tradição). O problema desta doutrina aparece no fato de que a Igreja de Roma e a Igreja Ortodoxa acreditam que a tradição oral é tão importante, e com a mesma autoridade, que as Escrituras. Em outras palavras, se afirma que as Escrituras não são inteiramente suficientes para entender a revelação especial de Deus.

Na Reforma Protestante, as igrejas nacionais que foram reformadas, ensinaram e afirmaram que as Escrituras eram a revelação especial de Deus, juntamente com Jesus Cristo. Deste modo, a revelação especial de Deus está formada pela palavra escrita (as Escrituras) e a palavra incarnada (Jesus Cristo).

As Igrejas Reformadas (luteranas, calvinistas, presbiterianas, reformadas e anglicanas) fizeram seu o slogan, "Sola Scriptura."

A maior dificuldade surgiu quando este slogan mudou de significado com o tempo, significando que só podíamos acreditar naquilo que estava nas Escrituras. Isto não era o que ensinavam, ou acreditavam, os Reformadores, simplesmente porque as Escrituras nem falam sobre todas as coisas ou, quando falam, nem sempre tem instruções detalhadas sobre uma questão particular. Por exemplo, o culto cristão.

Ao contrário do que vejo hoje entre os autores cristãos, os Reformadores não eram contrários as tradições apostólicas, simplesmente acreditavam que estas deviam estar submetidas à autoridade da Palavra de Deus. Os Reformadores eram grandes conhecedores dos Pais da Igreja, da Patrística e da tradição apostólica. Não em vão, podemos encontrar numerosas citações e referências históricas nos escritos de João Calvino, Martinho Lutero, Thomas Cranmer, e tantos outros reformadores.

Eles discordavam do Magistério da Igreja Católica, mas não concordavam tampouco com a posição da interpretação livre e individual das Escrituras. De fato, isto é claramente contrário as Escrituras, se observamos que a Igreja tomava decisões doutrinárias e interpretava as Escrituras nos Concílios, como em Atos 15, e, também, podemos ver isto acontecendo na história da Igreja. Agora bem, os Reformadores eram conscientes que as decisões tomadas em concílios podiam cometer erros. Os Concílios nunca foram infalíveis, porque podem errar, e tem errado de fato, contudo se os Concílios podem errar, quanto mais pode errar uma interpretação individual.
ARTIGO XXI – DA AUTORIDADE DOS CONCÍLIOS GERAIS
Os Concílios Gerais podem errar, e tem errado, ainda nas coisas pertencentes a Deus. Portanto, as coisas ordenadas por eles como necessárias para a salvação não tem nenhuma força, nem autoridade, a menos que sejam claramente ensinadas na Sagrada Escritura.

Contudo, esta era a forma desenvolvida pela divina providência de Deus para governar a Igreja e, ao mesmo tempo, a Igreja tem autoridade para tomar decisões importantes para vida cristã em comunidade.
ARTIGO XX – DA AUTORIDADE DA IGREJA
A Igreja tem poder de decretar Ritos ou Cerimônias, e autoridade nas controvérsias da Fé, todavia não é lícito à Igreja ordenar coisa alguma contrária à Palavra de Deus escrita, nem expor um lugar da Escritura de modo que repugne a outro. Portanto, se bem que a Igreja seja testemunha e guarda da Escritura Sagrada, todavia, assim como não é lícito decretar coisa alguma contra ela, também não se deve obrigar a que seja acreditada coisa alguma, que nela não se encontra, como necessária para a salvação.
Um fato realmente importante é perceber como a Igreja é testemunha e guarda das Escrituras. Isto nos ajuda a entender o papel da Igreja, quando surgem tantas vozes cristãs contrárias a própria Igreja institucional, como se existissem igrejas que não são institucionais.

A Igreja tem a autoridade para estabelecer práticas, costumes e ritos, sempre e quando não sejam contrários as Escrituras. Ao mesmo tempo, a Igreja de Jesus Cristo sempre conviveu com uma diversidade em unidade.
ARTIGO XXXIV – DAS TRADIÇÕES DA IGREJA
Não é necessário que as tradições e Cerimônias sejam em toda parte as mesmas, ou totalmente semelhantes; porque em todos os tempos tem sido diversas, e podem ser alteradas segundo as diversidades dos países, tempo e costumes dos homens, contanto que nada se estabeleça contrário à Palavra de Deus. Todo aquele que por seu particular juízo, com ânimo voluntário e deliberado, quebrar manifestamente as Tradições e Cerimônias da Igreja, que não são contrárias à Palavra de Deus, e se acham estabelecidas e aprovadas pela autoridade comum, (para que outros temam fazer o mesmo), deve ser publicamente repreendido, como quem ofende a ordem comum da Igreja, fere a autoridade do Magistrado, e vulnera as consciência dos irmãos débeis.
Toda a Igreja particular ou nacional tem autoridade, para ordenar, mudar e abolir as Cerimônias ou Ritos da Igreja, instituídos unicamente pela autoridade humana, contanto que tudo se faça para edificação.
Talvez, uma questão particular dos Reformadores Ingleses é que não tiveram medo de explorar mais a questão e papel da tradição na vida da Igreja, enquanto outras igrejas se dividiam em questões doutrinárias de diversas índoles, o que terminou causando mais divisões, conflitos e desentendimentos ao longo da história. Estas divisões poderiam haver sido evitadas, se se houvesse analisado mais seriamente o papel da tradição na interpretação das Escrituras.

O Anglicanismo tomou um enfoque histórico da interpretação bíblica e do Cristianismo. Portanto, a teologia, adoração e práticas estavam formadas pelas tradições da Igreja indivisível dos primeiros cinco séculos, sempre e quando estas não fossem contrárias as Sagradas Escrituras. A Reforma Inglesa - do século 16 e 17 - permitiria que os erros doutrinários, as superstições religiosas e as heresias medievais fossem rejeitadas na Igreja da Inglaterra, contudo não seria um rompimento com a Igreja histórica. A tradição ajudou a interpretar e entender as Escrituras, sendo as próprias Escrituras a suprema autoridade.

Isto permitiu que diversas sensibilidades pudessem conviver juntamente sob a autoridade das Escrituras e, ao mesmo tempo, que uma confissão de fé Cristã (os 39 Artigos da Religião) fosse escrita e afirmada por todos. 

Não em vão, os Reformadores tinham consciência de textos bíblicos, como 2 Tessalonicenses 2.15; 2 Tessalonicenses 3.6 e 1 Coríntios 2.11, que ensinavam que era importante considerar os ensinos dos apóstolos (Atos 2.42; Judas 3) que haviam sido transmitidos de geração a geração pela Igreja e, ao mesmo tempo, precisavam analisa-los a luz das Escrituras. Deste modo, não tomariam posições errôneas como a Igreja de Roma, onde acreditam que a Santa Tradição e as Escrituras tinham a mesma autoridade, ou erros modernos onde pastores interpretam livremente as Escrituras sem ter nenhuma consideração a fatores históricos, hermenêuticos ou exegéticos.

Ao final de contas, se a Igreja sempre ensinou uma mesma doutrina cristã, em todo lugar e em todo tempo, sendo esta fundamentada nas Escrituras, então podemos afirmar sendo correta a luz das Escrituras, porque a fé Cristã não muda, como Jesus Cristo não muda (Hebreus 13.7-9).

Infelizmente, vivemos em um tempo, onde as pessoas estão desejosas de novidades e da última "revelação".

O Anglicanismo sempre entendeu a questão da tradição, da mesma forma que os outros Reformadores continentais. Talvez, a maior diferença se encontre no fato de que os Anglicanos refletiram e escreveram sem preconceito sobre esta questão, o que permitiu que tivessem uma posição de maduridade espiritual e profunda reflexão.

No contexto atual, a tradição, submetida as Escrituras, nos ajuda a perceber que a Igreja não nasceu ontem e, ao mesmo tempo, nos chama a ser humildes diante do fato de que temos muito a aprender daqueles que andaram antes de nós.

Deste modo, não seremos como aqueles que são levados pelas novas correntes de doutrina ou pensamento. "Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente" (Efésios 4.14).

A tradição nos lembra a seguir fielmente o conselho do apóstolo Paulo a Tito, "Retendo firme a fiel palavra, que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, tanto para admoestar com a sã doutrina, como para convencer os contradizentes" (Tito 1.9), porque ela não enfraquece as Escrituras, pelo contrário nos ajuda a entender e viver as Escrituras, como a Igreja entendeu e viveu as Escrituras nos últimos 2.000 anos.

E, deste modo, seremos capazes de manter a unidade e a fé que recebemos daqueles que viveram antes de nós. A mesma fé que foi pregada, ensinada e vivida na igreja primitiva. Assim, seremos parte da Igreja una, santa, católica e apostólica, tendo um mesmo sentir uns com os outros e com a Igreja Cristã, "Irmãos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo suplico a todos vocês que concordem uns com os outros no que falam, para que não haja divisões entre vocês, e, sim, que todos estejam unidos num só pensamento e num só parecer" (1 Coríntios 1.10).

Glória ao Pai, ao Filho e ao Santo Espírito, como era no princípio, é agora, e sempre será. Amém.
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