Brasil, Justiça Social e os Padres da Igreja

Este artigo nasce como fruto de uma reflexão pessoal sobre a realidade brasileira na qual estamos inseridos e imersos. Brasil é meu país adotivo, e onde vivo já faz quase dez anos.


Há alguns dias, logo após assistir a uma conferência, dispuz-me a tomar o metro em direção a rodoviária do Tietê, enquanto ainda ressoava em meus ouvidos as palavras do ministro, e ainda me achava envolvido pela emoção da mensagem, quando de repente me dei conta da realidade que me cercava ao redor: uma multidão de pessoas amontoadas sem perceber os mendigos com suas poucas possessões que encontraram na entrada do metro; uma fria e mal preservada estação de metro, e um forte e persistente cheiro de urina; a pobreza se mostrava de uma maneira impiedosa e implacável, em uma existência diária que nos leva a desumanização.

Uma vez parado o trem, uma multidão entrou no metro em meio de outra multidão já no interior do vagão do metro, porém aqueles poucos mendigos que subiram espaço encontraram lugar e as pessoas não desejavam ficar perto deles. Longe estava já as palavras que nos inspiravam a sonhar um novo mundo, e me encontrava com a via mesma. Deus, com a sua linguagem bem mais eloqüente, que é a realidade, me mostrava as pessoas, lá atrás no tempo, o moveu de compaixão na ocasião da multiplicação dos pães.

O contato com a multidão, com a dor, com a busca da esperança e com a injustiça era moeda corrente no mundo apresentado nas Escrituras. A Igreja dos primeiros séculos cresceu em meio da pobreza, a opressão e as injustiças. Foi assim que o povo de Deus aprendeu a ser Igreja de Cristo e onde os primeiros líderes e doutores da igreja desenvolveram toda a doutrina cristã e, inclusive, a litúrgica; e chega-se a conclusão de que, depois de tudo, a atual realidade brasileira é bastante semelhante aquela que a igreja primitiva conheceu e trabalhou para mudar com a mensagem do evangelho do Reino. Eles, como nós, conheceram de perto a opressão, a usura impositiva perpetrada pelas autoridades imperiais, a morte injusta, a postergação, o medo ao futuro incerto. Basta ler o seguinte parágrafo de uma homilia de João Crisóstomo para nos dar conta de como ele percebia toda a magnitude desta verdadeira tragédia humana, já no 4º século, tal como eu agora, em pleno século 21, olhando da janela embaçada, numa chuvosa e fria tarde de verão em Pindamonhangaba:

"No inverno, ao contrário, se lhes faz a guerra por todas as partes, e o cerco lhes é fechado pelos dois lados: a fome lhes consome por dentro as entranhas, e o frio os congela por fora e lhes mata a carne. Daí a necessidade de mais abundante comida, vestes mais quentes, abrigo e cama, calçados e muitas outras coisas... Mas, ainda por cima, agora que mais necessitam do do que lhes é essencial para viver, tiram-lhes o trabalho, porque ninguém dá emprego a esses pobres, nem são chamados para serviço algum, nem mesmo a baixos salários... Esta é a nossa embaixada, para a qual tomamos como ajuda aquele que foi verdadeiramente o protetor dos pobres, o apóstolo Paulo" - São João Crisóstomo


Me surpreende a agudeza com que Basílio, como João Crisóstomo, parece descrever a realidade atual do povo brasileiro, e me surpreende ainda mais ler os jornais e ver através de suas manchetes a sabedoria evangélica de Basílio. Hoje leia com surpresa a noticia de que cresce a pobreza ao redor do mundo, enquanto a riqueza se acumula em mãos de uns poucos. Lendo isso, não posso evitar que me viesse à mente um texto de Basílio que diz o seguinte:

"Tais são ricos, tais seus benefícios. Dão pouco e recebem muito. Esta é vossa humanidade. Expoliam, mesmo quando dizem que socorrem. Para vocês, até mesmo o pobre é uma fonte fecunda da vossa ganância. Impõem ao pobre a usura, (o consumismo), e sabem obrigá-lo depois a pagar caro por isso, mesmo quando não tenham sequer o suficiente para as suas necessidades básicas. Como vocês são misericordiosos! Os que vocês ‘libertam’, vinculam a vocês e os obrigam a que vos paguem pelas suas ganâncias, mesmo que não tenham o que comer. Pode-se imaginar..."São Basílio


João Calvino explicou deste modo no seu comentário do Salmo 74, como tinhamos que lembrar os pobres e cuidar deles,

“Deus tomou um cuidado maior pelos pobres que os outros, devido a que estão mais expostos a violence e lesões… Davi, portanto, particularmente menciona que o rei seria o defensor daqueles que somente podem ser salvos sobre a proteção dos magistrados.”


A questão de que isto deveria ser deixado somente a ação de pessoas bondosas, foi respondia com clareza pelo próprio João Calvino quando afirmou que era a função da igreja através dos diáconos. Calvino afirmou o antigo refrão cristão de que a propriedade da igreja é a propriedade dos pobres. Ele seguiu a regra da igreja medieval recomendando as igrejas dedicar ao menos a metade dos seus recursos para cuidar dos necessitados.

A busca do desenvolvimento humano é um compromisso do qual nenhum cristão está isento, pois não lhe exige uma tradição, nem sequer um comportamento ético, mas trata-se antes de uma exigência que brota das palavras de Jesus:

"porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; estava na prisão e viestes a mim». ( Mt 25, 35-36).

Gregório de Nazianzo, apregoando uma sociedade baseada na igualdade primitiva, deixou o seguinte escrito:

“Imitemos este lei sublime e primeira de um Deus que faz cair chuva sobre os justos e sobre os maus e faz com que o sol se levante sobre todos os homens. Às criaturas que vivem sobre a Terra, ele concede imensos espaços, fontes, rios, florestas. Para as espécies aladas ele criar o ar, e a água para a fauna aquática. Fornece a cada um todo o necessário para a subsistência. E seus dons não caem nas mãos dos fortes, não são medidos por lei, nem repartidos entre estados. Tudo é comum, tudo existe em abundância. Quando os próprios homens amontoaram em seus cofres ouro, prata, diamantes e coisas do gênero, então uma louca arrogância endureceu suas feições. Eles não refletem sobre o fato de que pobreza e riqueza, condição livre e servil, além de outras categorias semelhantes chegaram tarde demais entre os homens e se propagaram como epidemias, trazidas pelo pecado do qual eram invenções” ' São Gregorio


O cristão não deve ter medo de denunciar a injustiça social, tão pouco guardar um silêncio cúmplice a seu respeito, ainda que, muitas vezes, corra-se o risco de ser mal interpretado; o brilhante João Crisóstomo também teve que defender-se de dessas acusações, como podemos ver neste fragmento:

"Está certo, há muitos que não param de me dizer: 'estás atacando aos ricos!' Mas, são eles que atacam aos pobres! Como eu ataco aos ricos? Não aos ricos, mas aos que usam mal as suas riquezas. Eu não me canso de repetir que não condeno aos ricos, mas ao ladrão. Uma coisa é o opulento, outra o avarento. Distingue as coisas e não confunda o inconfundível. És rico? Parabéns! És um ladrão? Eu te condeno por isso. Tens o que é teu? Desfruta-o! Apoderas-te do que não é teu? Então, não calarei a minha boca! Queres me apedrejar? Pois, bem, eu estou pronto a derramar o meu sangue, desde que isso impeça que cometas pecado" - São João Crisóstomo


A cada dia me convenço mais do valor da leitura dos Padres da Igreja e os Pais da Reforma, e não apenas em um plano espiritual, já que defenderam como ninguém as verdades cristãs, mas também em termos sociais. Como não lembrar as palavras de Basílio ao sermos impactados com a atitude francamente gananciosa e materialistas de tantas pessoas, governos, bancos e corporações. Não é uma questão contra a economia do mercado ou o livre comercio, mas a necessidade da justiça social como estilo de vida essencial da Igreja de Cristo.

"Mas, tu me dizes: ‘Dinheiro e interesse, buscas de quem nada tem? Por acaso, isso te faria mais rico? Que necessidade teria de bater à tua porta? Veio procurar um aliado e encontrou um inimigo. Buscava um remédio e encontrou um veneno. Era teu dever socorrer a indigência deste homem, e tu a multiplicas pois, tratas de tirar dele até esgotar o pouco que tem'."


Estou consciente de que este artigo pode parecer uma defesa de valores socialistas para alguns dos meus amigos e, ainda para outros, seja um texto que não vai longe o suficiente. Entretanto, é absolutamente certo que existe um claro pensamento social na igreja primitiva e reformada, da mesma forma que, indubitavelmente, a partir do próprio Evangelho se depreende uma consciência social. Porém, a mesma não pode ser considerada como socialista, nem tampouco responde aos atuais valores do liberalismo social e político. Se encontram presente na catolicidade da igreja e os valores do evangelho do Reino de Deus.

Meu desejo, e oração, é que não comentamos os erros da Teologia da Libertação, porém tampouco sejamos como aqueles que endurecem o coração diante da pobreza e as injustiças sociais tão fortes nas nossas cidades e no nosso amado Brasil.

Como ficar calados diante da pobreza?

Não devemos perder de vista que a pobreza é causa do pecado e a transformação social começa com a mensagem das boas novas do evangelho do Reino. Isto nos deve refletir como uma cidade como São Paulo, com o maior número de milionários (1.885 pessoas em 2015) da América Latina, não tem alcançado a trazer certo ordem social, cultural e urbano. Essa mesma cidade que é considerada a 17º cidade com maior número de bilionários no mundo.

Não desejo tirar a riqueza deles, Deus nos livre de tal desejo. Desejo trazer uma reflexão da urgente necessidade de ver os valores do Reino existentes nas igrejas, nos cristãos, no Brasil. Talvez, assim, sejamos capazes de ser uma voz profética de mudança social, humana e urbana.

Deus tem misericórdia de nos, pecadores!!!

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