O Que Significa Ser Reformado?


Recentemente, alguém me perguntou porque tínhamos o termo “Reformada” no nome da nossa igreja. Ele não entendia a razão desse nome. Infelizmente, depois de cinco séculos, a maioria dos evangélicos esqueceram sua própria historia.

Possivelmente, se perguntássemos, a maioria dos evangélicos não entendem o que significa ser evangélicos. A porcentagem ainda seria maior entre os não-evangélicos. Contudo, existem um interesse crescente da teologia reformada entre os jovens evangélicos brasileiros. Isso é um fato muito positivo.

Infelizmente, também existe certa confusão sobre o que significa ser reformado. Alguns pensam que ser reformado significa ser calvinista, outros ser presbiterianos, e ainda tem aqueles que pensam que ser reformado significa afirmar a Confissão de Fé de Westminster.

Nós, anglicanos, confessamos que somos reformados, porque esta é nossa herança. Infelizmente, essa herança e grande verdade tem sido esquecida pelo fato de que o Anglicanismo Brasileiro tem sido fortemente influenciado pelos anglo-católicos e o liberalismo. Contudo nosso jeito de ser reformado, difere do jeito presbiteriano, ou batista, de ser reformado.

A Igreja de Inglaterra, da qual surgiu o movimento anglicano global, nasceu do fogo da Reforma Protestante, e fogo literal. A Igreja de Inglaterra tem até hoje uma confissão de fé claramente Reformada. Também, é certo que o anglo-catolicismo e os não-conformistas tem tentado destruir qualquer referencia a sua identidade protestante do Anglicanismo e sua doutrina reformada dos 39 Artigos da Religião.

O próprio Spurgeon falou dos Trinta e Nove Artigos no sermão “A Inclinação da Carne é Inimiga de Deus”,
Agora, meus queridos leitores, “somente a Bíblia é a religião dos protestantes”: mas sempre que reviso um certo livro tido em grande estima por nossos irmãos anglicanos, o encontro inteiramente ao meu lado, e invariavelmente sinto um grande deleite ao citá-lo. Vocês sabem que sou um dos melhores clérigos da Igreja da Inglaterra, o melhor, se me julgarem pelos Artigos, e o pior se me julgarem por qualquer outra norma?

Meçam-me pelos Artigos da Igreja da Inglaterra, e não ocuparia o segundo lugar ante ninguém abaixo do céu azul do firmamento, pregando o evangelho contido neles; pois, se há um excelente epítome do Evangelho, se encontra nos Artigos da Igreja da Inglaterra. Permitam-me mostrar-lhes que não estiveram escutando uma doutrina estranha.

Temos, por exemplo, o artigo nono, sobre o pecado de nascimento, o pecado original: “O pecado original não consiste em seguir a Adão (como o afirmam em vão os pelagianos), mas é a falha e a corrupção da natureza de cada indivíduo, que naturalmente é engendrada pela prole de Adão, pela qual o homem está sumamente distanciado da justiça original, e é por sua própria natureza propenso ao mal, de tal forma que o desejo da carne é contra o Espírito; e, portanto, toda pessoa vinda a este mundo merece a ira de Deus e a condenação. E esta infecção da natureza efetivamente permanece, sim, nos que são regenerados; pelo qual a concupiscência da carne, chamada no grego: phronema sarkos, que alguns expõem como a sabedoria, a sensualidade, o afeto, o desejo da carne, não está sujeita à Lei de Deus. E ainda que não haja condenação para os que crêem e são batizados, contudo o apóstolo confessa que a concupiscência e a lascívia têm em si a natureza do pecado.”

Não necessito mais nada. Acaso alguém que creia no Livro de Oração discordará da doutrina que “a mente posta na carne é inimiga de Deus”?
John Owen, renomeado puritano, uma vez já fora da Igreja da Inglaterra por causa do Ato de Uniformidade 1662, escreveu a seguinte declaração a qual se aproximava muito a subscrição requerida aos ministros da Igreja da Inglaterra,
"Eu abraço a doutrina da Igreja da Inglaterra, como declarados nos Trinta e Nove Artigos, e outros escritos públicos dos mais famosos bispos e outros teólogos da mesma." (Works of John Owen, 14:196)
Em 1669, Owen escreveu novamente,
"A principal glória da Reforma Inglesa consistiu na pureza de sua doutrina, assim restaurada primeiro a nação. Esta, como está expressada nos artigos da religião, e nos escritos publicamente autorizados dos bispos e teólogos principais da igreja da Inglaterra, é, como já fui dito, a glória da Reforma Inglesa" (Works of John Owen, 13:354).
Estas palavras de Spurgeon e Owen mostram como que os anglicanos possuem no culto (o Livro de Oração Comum), nas ordens sagradas (Ordinário) e na doutrina (os 39 Artigos da Religião), o perfeito formulário que faz de nós uma igreja reformada.

Ser reformado não é simplesmente afirmar um formulário, porque isto poderia ser simplesmente um exercício acadêmico, sem mais. Declarar que somos reformados, significa que nossa fé, vida e valores estão sendo formada e conformadas pelas Escrituras. Não em vão, os reformados somos o Povo do Livro.

Ser o Povo do Livro, nos ensina a ser um povo (a Igreja) que segue os ensinos do Livro (as Escrituras) para que Deus seja glorificado sempre através da nossa vida, testemunho e exemplo. Não vivemos mais por nós, mas vivemos sobretudo para que Deus seja glorificado cada dia através de nós. Assim, estamos preocupados profundamente com o que está acontecendo na igreja hoje, porque faz que Deus não esteja sendo glorificado, como foi revelado pelo nosso Senhor, Jesus Cristo.

Neste primeiro artigo desta série, desejo simplesmente analisar de forma introdutória o que significa ser Reformado. Vou começar, onde todo começou. “No princípio, Deus...” (Gênesis 1.1). Não podemos começar de outra forma. J.I. Packer escreveu estas palavras na sua introdução a obra de John Owen, “Death of Death in the Death of Christ.”:
“Calvinismo é um caminho teocêntrico (centrado em Deus) de pensamento sobre todos os aspetos da vida sobre a direção e controle da própria Palavra de Deus. Calvinismo, em outras palavras, é a teologia da Bíblia vista desde a perspectiva da Bíblia – o ponto de vista centrado em Deus que vê o Criador como a fonte, e significado, e fim, de todas as coisas que são, tanto na natureza e na graça.”
Por “todos os aspetos da vida,” Packer se refere ao nosso emprego, nossa amizade, nossa criatividade, nossa imaginação, nosso exercício, nosso casamento, nossas relações, nosso dinheiro, nosso tempo e, inclusive, a própria morte. Reconhecemos que todo nasce e vive a partir de Deus, “porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados, sejam poderes; tudo foi criado por ele e para ele” (Colossenses 1.16).

Para cristãos reformados, isto também inclui os Anglicanos, o culto não é um ato que só acontece nos domingos, mas, como todas as coisas vem dEle e somente dEle, nossa vida é um ato de louvor. Isto vem a ser conhecido durante a Reforma através da frase em latim, “Soli Deo Gloria,” que significa somente gloria a Deus. Todo o que fazemos, tem um significado espiritual e é um ato de adoração.

Portanto, o seu emprego tem importância para Deus, como o seu casamento e as amizades na sua vida. Esta realidade transforma o entendimento, porque somos consciente que a nossa vida deve ser um ato de adoração ou, do contrario, será um ato de idolatria.

Por este motivos, não estamos satisfeito com uma espiritualidade que nós fecha nas quatro paredes do templo, ou em pequenos grupos, ou nos círculos cristãos. Somos conscientes de que caminhamos com Deus o tempo todo, e Sua gloria está presente em cada aspeto da vida humana e, assim, cada ação é uma ação de culto a Deus. Esta espiritualidade faz presente o Reino de Deus nas nossas vidas, família, casamento, emprego, bairro, cidade e no mundo todo. A vida não se encontra já mais fragmentada, mas é uma só.

Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que somente Deus e só Deus merece toda a gloria, porque todo começa com nossa salvação. Ainda que, muitos irmãos pensem que todo termina com a salvação. “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não vem das obras, para que ninguém se orgulhe” (Efésios 2.8-9).

Deus é o todo, e o motivo da existência e da vida. Assim, aclamamos com absoluta certeza, “No principio, Deus...” Todas as coisas boas vem de Deus, e do que temos recebido somos agradecidos.

Como cristãos reformados somos, e devemos ser, um povo agradecido por todo o que temos, porque vem de Deus. Seria um erro, pensar que temos certas coisas, porque somos bons em isto ou aquilo. Na verdade, somos bons em isto e aquilo, porque Deus primeiro nós deu essas habilidades e permitiu na sua providencia nossa realização.

Spurgeon escreveu, “Não é oração, não é fé, não é nossas tarefas, ou nossos sentimentos sobre o que devemos descansar, mas sobre Cristo e somente Cristo.” (The Comer’s Conflict with Satan” Spurgeon’s Sermons Vol II pg 309)

Ser reformado é ser um povo que glorifica a Deus em cada área a aspeto da nossa vida.

- Soli Deo gloria -


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Texto da minha autoria publicado na revista "A Espada e a Espátura" do Projeto Spurgeon, Abril de 2012.

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